Escrever sobre metafísica é arriscar imprecisões, porque mais facilmente confiamos na nossa ignorância do que duvidamos da nossa sapiência. Muito provavelmente, terão nascido daqui muitas das grandes guerras e disputas que marcaram a história da humanidade, já que são muito raras as vezes em que duas visões antagónicas dão origem a uma pacífica verdade universal. As discussões bipolarizam as opiniões e da bipolarização advem sempre a radicalização.
Há mês e meio, aquando da comemoração do 90º aniversário das aparições de Fátima, a RTP dedicou várias horas de transmissão televisiva ao acontecimento, cobrindo também a inauguração da nova Basílica de Fátima, facto que levou a que muitos telespectadores escrevessem ao provedor da RTP exigindo da televisão pública tratamento igual para todas as religiões, já que o estado se diz laico.
É recorrente confundir os conceitos de igualdade e liberdade. Se defendemos a igualdade ou pedimos tratamento igual para todas as religiões – desde uma fé que move milhões até uma que move meia dúzia de pessoas –, ou exigimos que todos tenham a mesma religião – ou todos abdiquem de ter uma. Por outro lado, a liberdade permite a coexistência ainda que tenha um carácter mais competitivo e, frequentemente, afogue as crenças com menor expressão. Este é um dos grandes desafios para a política de hoje que, apesar da secularização, se polariza entre uma direita-cristã e uma esquerda-ateísta; uma polarização que é, ainda assim, funcional, já que todos os cidadãos têm direito a ser representados em democracia, escolhendo para esse efeito partidos ou pessoas em quem revejam as suas ideias, mesmo que estas sejam de carácter estritamente religioso.
Para continuarmos é necessário distinguir três conceitos: país, estado e nação. De forma algo simplista, podemos definir os conceitos da seguinte forma: um país é um espaço delimitado geograficamente; o estado é o responsável pela criação e aplicação de políticas; a nação é um conjunto de membros com características culturais em comum. Posto isto, podemos conceber facilmente que uma nação não deve ser – nem o é em lado algum do mundo – obrigatoriamente laica, ao passo que um estado deve afirmar-se laico e independente das pressões das estruturas eclesiais. Daqui podemos considerar que um partido pode defender certos interesses religiosos – e aqui cabem várias religiosidades –, mas o estado tem, necessariamente, de ser independente em relação a eles – ainda que não exista uma fronteira óbvia entre o servir a religiosidade e o ser independente em relação à religião, ainda que hajam diferenças óbvias entre os conceitos de religião e o de religiosidade – e mesmo os dois são demasiado ambíguos para que os possamos discutir a fundo nesta crónica.
No Verão de 2004 o país uniu-se à volta de um símbolo: foram as bandeiras nas janelas; a maior bandeira humana no estádio nacional; as tantas praças portuguesas que se encheram para ver e apoiar a equipa de futebol nacional. Foi uma verdadeira celebração religiosa – ainda que profana – que reuniu todos os portugueses à volta de um símbolo em que todos acreditavam; uma crença comum. O mesmo se passa em Fátima: conta-se em milhões o número de pessoas que já peregrinaram ao santuário em nome da fé e da crença.
A televisão pública foi planeada para servir os cidadãos e nela cabem todas as crenças: do futebol à saudade dos migrantes; da informação séria e descomprometida aos filmes e séries; da programação para as massas do primeiro canal à exigência dos telespectadores da dois. Todos os cidadãos têm direito a uma programação pensada à sua medida, mas têm também o dever de compreender que a televisão pública é pensada para uma nação cada vez mais multicultural.
Chegados a este ponto somos capazes de entender que a democracia supõe que todos os cidadãos se sintam representados, mas também que a maioria tem direito a exigir mais tempo de antena. No que respeita à religião, penso que o programa A fé dos homens da :2 cumpre bastante bem o objectivo, já que todas as religiões têm o seu espaço. E é assim, aliás, que deve ser entendida a atenção mediática das várias crenças: todas devem ter espaço e direito à palavra, mas o espaço tem de ser sempre proporcional ao número de crentes.
publicado originalmente no ComUM.